Tuesday, August 15, 2006

Amantes e quase nada

Aprendi a gostar da madrugada nesse dia dos pais, de novo. Não no dia, que tem luz e pais e almoços e família forçosamente reunida, mas naquelas intermináveis líquidas e modeláveis horas que passavam de alguma forma paradigmática quântica enquanto eu socava farinha e água dentro de uma bacia. Tof pof, tof pof sfrehh fazia pam também batendo na pia de granito e eu ia deixando a maciez invisível da noite me abraçar e acompanhar meus braços enquanto nós dançávamos pelo tempo mas... nem importava o tempo. Tanto, affe, vamos dizer de novo, teeeempo que eu estava acordado e mal dormido da passada noite regada a vinho barato que as escadas da minha casa, o sofá a televisão ligada a luz branca da pia e a amarela do teto eram brinquedinhos da superfestas flutuando na minha frente, e eu ia nadando morto-vivo com os olhos brilhando, do quarto com a cama quente e a minha mulher e ia, só ia sem sair daquela escuridão e já estava entre eletrodomésticos de plástico branco e um pano cheio de idéias crescendo com o fermento que levava ainda um... o que mesmo? A palavra “ainda” me traz alguma coisa desse elo lógico que falta pra que esse conteúdo expandido se aprume e se apresente. Agora é noite e só consigo lembrar do brilho dessa era minha comigo de ponta cabeça dançando no teto, descobrindo que a vida bonita é feita mesmo do avesso nesse espaço entre os dias. A MTV realmente tem uma programação interessante, com clipes bons de verdade e eu dancei ouvindo e vendo eles, mas não, não tem nenhum dia que tu ligue a televisão e esteja passando algo com mais conteúdo do que a Cicarelli tentando montar um quebra cabeça de 50 peças. Isso é legal, engraçado mas eu não paro aí e flutuo, vou mergulhando nesse álcool em gel que me embebeda de estrelas da madrugada e, no meio disso, minha avó acha tudo estranho mas dá risadas enquanto vai ao banheiro. Bem coisa do Fabrício flutuar na sala com um monte de farinha no rosto!
Se ela soubesse que era com minha boca que ia aumentando o tamanho da massa... em leves porem firmes mordidas em um papel amarelo escrito veneranda enquanto aquela coisa que eu não sei mais nomear ia andando comigo e deixava minha pele brilhando azul naquela ausência de preocupação, de distância entre os espaços. C´est ici a cozinha mas mesmo assim era a só um ou dois pulos grandes do mar vermelho e eu batia batia em alguma coisa que eu não via com meus braços tão tapados pelo saco amarelo colado no meu nariz e lábios. Quem imaginava em morder o saco? Aquele tijolo enorme até que era quentinho e ali deixei o meu pequeno saco de pancadas parado no morno enquanto ia escalando os puxadores dos armários, e cavava um buraco no chão do meu quarto com a vontade, sim, vontade substantivada em abridor de buracos. Eu provei um toque aveludado e calor com pintas e um sorriso meio sonolento grudado no meu travesseiro e era tão linda ela ali dormindo e crescendo bonita que eu peguei ela de novo nas minhas mãos e bati, bati e bati nela, espremi ela no chão de granito e passei um rolo em cima, tinha um óleo vermelho e pedaços assim de alguma coisa espalhados naquela massa disforme, tão estranho que eu fiquei preocupado e resolvi tirar aquilo logo da pedra, antes que começasse a cheirar mal e estragar. Foi difícil desgruda-la porque eu tinha batido demais nela e tinha aquele óleo escorregando por tudo. Nesse delírio eu podia ter facilmente vomitado e perdido o brilho das minhas mãos mas tratei logo de empacotar ela e mandar pro fogo. Pra comemorar dancei ao som de depeche mode lambendo o quadro das flores envelhecidas que se inclinava sobre o sofá maior, aquele pra três pessoas.
Um, dois, três, quatro, cinco, dez, onze, doze dedos. Ela deitava naquele tijolo frio, ela tão quente e eu tão frio nessa cozinha que já tinha virado um forno com aquele corpo atirado ao fogo e assando reto e torto e apertado numa travessa de aço velha e torta, cheia de manteiga e um resto de sanidade e noção da diferença entre as memórias e as percepções que acabaram com o mítico, adorado e cocainômano Patolino pulando desordenado na tela da televisão, me dando tapinhas nas orelhas e fugindo do síndico do hotel com o gaguinho nas costas, é claro, gaguejando e fazendo cara de pouquinho, o que ele faz de melhor. No ponto, a escuridão me abandonou e eu tirei o pão do forno. Quanto... tempo? Isso, tempo tinha passado e eu só sentia frio e felicidade e morria quase inteiro. Larguei o afeto que eu tinha assado na mesa, corri pros braços da minha mulher e pedi que, por favor, ela me abraçasse o dia inteiro e me aquecesse e me protegesse por, por favor por favor por favor do que a madrugada tinha deixado sobrar pro sol.

Fabrício Viscardi, primeiros olhares a madrugada de 14 para 15 de agosto de 2006.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

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10:44 AM  
Anonymous Anonymous said...

Eu gosto muito desse texto seu, quando acabo de ler os meus olhos sorriem haha :]
Teus textos me fazem vir milhões de imagens na cabeça, eu consigo ver o que você enscreveu (ou inventar também, já que a subjetividade que lidera e eu chego a cogitar se a minha capacidade mental me permite o entendimento correto :P)
mas eu gosto da subjetividade do que você escreve, muito.

Isso de escrever exatamente o que te vem na cabeça, naquela hora em que algo aconteceu.. é engraçado como eu consigo ver seus pensamentos agora, só com um texto.
e tem mais essa coisa de 'gosto de um texto porque me identifiquei com ele'.. não, eu não tive nehuma experiência com massa e madrugada, mas eu quero dizer no sentido de que não consigo colocar no papel essa junção de fatos com pensamentos (ou é um, ou outro)
e quando eu coloco, nunca é o bom suficiente.

Acho que vou tentar cozinhar no próximo dia dos pais.

3:37 PM  
Anonymous Anonymous said...

Bá, agora eu li meu comentário de novo e tá um vergonha! Mas tá entendível pelo menos, então abstrai os erros de concordância ok? ;P

4:06 PM  

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